O pessoal do ônibus

Eu já estava morando com meus novos papais a uns 90 dias. Isso é muito tempo pra uma cachorra. Estava muito feliz, porque me deixavam dormir junto na cama. Rsrsrs Ah, nessa época eu ainda não sabia o que tinha acontecido, mas os outros cachorros haviam desaparecido. O cheiro deles estava lá, mas apesar do cheiro de meninos, os papais eram todos meus.
Apesar de feliz, meu novo papai estava diferente. Todos os dias ele saía de casa e demorava pra voltar. Minha mamãe estava juntando todas as coisas da casa e colocando em caixas. Nossas visitas ao shopping também ficaram mais frequentes. Eu adoro ir no shopping, chato mesmo é que toda vez eu estava levando uma vacina. Mas tudo bem, todos pareciam felizes. Se for para ver todos felizes, eu até aceito fazer vacina.
Um dia nossa casa ficou cheia. Veio um monte de gente estranha e começou a carregar as caixas que a mamãe tinha guardado as coisas.
_Banho, vacina, comida do papai, baixa a tampa do vaso depois que usar... 

Éh, eu aprendi uns palavrões novos. Hehehe.. Mas por mais que eu xingasse, eles continuavam carregando as coisas e faziam de conta que não me entendiam. Depois daquilo, sobrou bem pouca coisa na nossa casa. Uma mala grande, um cobertor, minha casinha, um guarda-chuva rosa e um aquecedor. Mas todos estavam felizes. Fomos roubados e papai estava feliz. Mamãe pulava e falava sem parar algo como "praia, praia, praia".
Nós saímos daquela casa e nunca mais voltamos. As vezes eu ainda sonho com ela, mas faz tanto tempo que as imagens parecem meio borradas. Fomos para um lugar cheio de carroças gigantes. Muitas pessoas embarcavam naquelas carroças, que tinham um barulho muito alto. Me lembro que minha mamãe me tirou da casinha e deu algo para beber. O dia estava amanhecendo. Ela disse _Pimenta, vc precisa beber isso, pra poder ir com a gente. Eu queria que fosse diferente, mas o motorista do ônibus só deixa vc entrar se tomar isso, pra não fazer barulho.
Era amargo, mas eu tomei tudo. O gosto era horrível, eu estava ficando tonta. Queria morder o motorista por me fazer tomar aquilo, se as crianças humanas fazem muito mais barulho que eu, porque elas não precisam tomar esse negócio amargo também? Por que elas não precisam ir em uma gaiola, trancadas, como eu? 

O som dos pequenos humanos foi ficando cada vez mais distante naquele amanhecer. Me lembro de luzes, barulho, de vez em quando a mão do papai e da mamãe entravam na casinha e eu, que estava meio dormindo meio acordada, sabia que estava tudo bem, porque eles estavam comigo. Eu me sentia muito fraca e tonta, mas eu sabia que ficaria bem, porque eles estavam comigo e me protegeriam. É isso que um cachorro precisa sentir, para em troca dar todo o seu amor.

Uma das vezes que acordei ouvi um barulho de criança gritando e lati. Algumas pessoas falaram "tem um cachorro aqui, onde está?" O papai jogou o cobertor por cima de mim, eu fiquei quietinha e ninguém me achou.. kkk

Lembro de pouca coisa, só que a dor de cabeça e a tontura que eu senti naquele dia foi culpa do pessoal do ônibus. Daquele dia em diante, passei a odiar esse pessoal do ônibus, apesar de não saber muito bem o que é isso. Quando descemos da carroça gigante já era de noite. Embarcamos em outra carroça menor. Havia um cheiro diferente no ar, uma brisa úmida e um barulho de água.. De muita água. Eu sabia que estava passando perto de algo grande, mas não sabia de que. Alguns minutos depois, descemos na frente de várias casinhas, uma igual à outra. Naquela noite dormimos em uma daquelas casinhas. 

Meu estômago girava, vomitei uma espuma verde. Tudo por culpa do pessoal do ônibus e do que quer que me fizeram tomar. 

No outro dia, nos mudamos a pé. Papai ia na frente, arrastando a mala com uma mão e o guarda-chuva rosa e o aquecedor com a outra. Ah, quentinho... Mamãe ia atrás, me levava no colo e trazia a casinha e o cobertor. E aquelas eram todas as nossas coisas... Ainda bem que o quentinho não foi levado pelos saqueadores, porque estava muito frio...

Nossa casa ficou menor, e isso foi bom, porque nós aprendemos a ficar mais próximos uns dos outros. Pra que uma casa grande se for para ficarmos longe? 

Aos poucos, papai saía viajar e foi recuperando algumas caixas que nos roubaram. Não sei que mágica ele fez, mas sempre ele voltava com alguma caixa e o cheiro dos outros cachorros. Mas tudo bem, quem morava com ele era eu. Mas onde aqueles meninos fedorentos estavam?

Ficamos quase 3 primaveras naquela cidade. Eu adorava tudo lá. Tinha um lugar lindo que vou contar outro dia. Uma escada que eu subia e descia o dia todo, pra ficar com o corpo durinho... Tinha um shopping com muitas guloseimas e tinha o Romeu. Ah, Romeu, onde estarás hoje, Romeu. 

De Joaçaba-SC para o Patas na Estrada 2020, Pimenta, 18/12/2018

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